Na sequência do II Congresso Republicano de Aveiro a Oposição Democrática ao regime ditatorial de Salazar & Caetano decidiu concorrer às eleições à Assembleia Nacional de 1969.
Folheto de divulgação do II Congresso Republicano (Arquivo Alfredo Baeta Garcia)
Apesar das divisões provocadas, em três círculos eleitorais, pelas listas da CEUD de Mário Soares, a oposição concorreu unida, no restante país, sob a sigla da CDE – Comissão Democrática Eleitoral.
A participação nas eleições implicava o risco de “legitimar” um ato eleitoral que se sabia, à partida, fraudulento e em que o regime utilizaria todas as armas:
- Censura nos jornais, já que o acesso à rádio e televisão estava interdito à oposição;
- Perseguição e prisão para quem distribuía propaganda eleitoral;
- Destruição da propaganda nas próprias tipografias;
- Proibição e interrupção de sessões de propaganda;
- Assalto das sedes de campanha;
- Manipulação do recenseamento eleitoral (apenas 19% da população);
- Dificuldade de acesso aos cadernos eleitorais o que impedia a distribuição das listas da oposição (o eleitor tinha que levar a lista em que ia votar, sendo o papel ligeiramente diferente pois o governo não fornecia o papel);
- Finalmente, a chapelada, nas mesas não fiscalizadas pela oposição democrática.
Lista B da oposição democrática no circulo eleitoral do distrito de Coimbra (Arquivo João Nogueira Garcia) |
As eleições vieram, efetivamente, demonstrar a falsa abertura de Marcelo Caetano, mantendo-se todos os aspetos da máquina repressiva do regime sobre as mínimas tentativas dos democratas em evidenciar o seu apego à liberdade de expressão e reunião.
No Concelho de Góis a Oposição estava reduzida a um punhado de irredutíveis gauleses, digo, democratas varzeenses, que possuidores de uma poção baseada nos valores da liberdade, democracia e solidariedade, não dava tréguas ao regime. O meu pai, João Nogueira Garcia, participou ativamente na campanha assumindo a liderança da estrutura local dos varzeenses democratas e fazendo o elo de ligação com as estruturas de Coimbra e Arganil (Dr. Fernando Vale).
Convite para a reunião da Comissão Distrital (arquivo João Nogueira Garcia) |
Convite (arquivo João Nogueira Garcia) e imagem (Fernando Marques, Imagoteca Municipal de Coimbra) da sessão de propaganda no Teatro Avenida
Convite (arquivo João Nogueira Garcia) e imagem (Fernando Marques, Imagoteca Municipal de Coimbra) da conferência de imprensa da oposição
Infelizmente no restante concelho de Góis não era possível encontrar quem estivesse disponível para dar a cara pelos valores democráticos (como prova a troca de correspondência entre o meu pai, o dr. Fernando Vale e o Sr. Fernando Carneiro). Depois do 25 de Abril os alfaiates de Góis tiveram muito “trabalho” pois houve muitas “casacas” viradas!
Carta de Fernando Vale a João Nogueira Garcia sugerindo o nome de Fernando Carneiro, a residir em Lisboa, como “estando disposto a colaborar”.
Carta de João Garcia a Fernando Carneiro a pedir o seu contributo “dada a dificuldade em conseguir os indivíduos dispostos a colaborar” de modo a “arranjarem-se duas ou três pessoas (em Góis) para constituirmos a Comissão Concelhia” (arquivo João Nogueira Garcia).
Houve um intenso trabalho de campanha pois, além de se fazer chegar a mensagem aos eleitores, era, também, necessário fazer chegar as listas para a votação. Lembro-me que, na altura, com 12 anos, ajudei a colar muitos selos nos envelopes a enviar as listas. A votação decorreu com os atropelos do costume: A mesa da secção de voto era constituída, apenas, por afetos ao regime, houve o arrebanhar dos votantes por parte dos apaniguados da ditadura, a tentativa de troca de votos à entrada da secção e a colocação estratégica da Lusitaninha, ao fundo do ramal, a pedir para ver a lista que as pessoas levavam para o local de voto, na escola primária. Quando necessário, instigava à troca pela da União Nacional. Mas, como houve fiscalização, não foi permitida a chapelada. À tarde passaram pela Várzea alguns candidatos da oposição (recordo-me do Dr. Orlando Carvalho) e, também a nata dos serventuários do regime da sede do concelho, os quais foram “corridos” com um discurso inflamado da minha tia-avó Marquinhas.
Contados os votos verificaram-se 207 na lista A (União Nacional) e 99 votos na lista B (CDE). Uma enorme votação na oposição tendo em conta todos os atropelos cometidos pelo regime e, em especial, a restante votação no concelho de Góis. Saliente-se que, em todo o município goiense, houve 103 votos na oposição dos quais 99 foram na freguesia de Vila Nova do Ceira!!!.
Registe-se que na sede do concelho e nas outras três freguesias não houve qualquer fiscalização do ato eleitoral.
Certidão da assembleia de voto de Vila Nova do Ceira (arquivo Alfredo Baeta Garcia)
Texto elaborado por João Luís Matos Nogueira Garcia a partir de documentos dos arquivos pessoais de Alfredo Baeta Garcia e João Nogueira Garcia e alguma (pouca) memória desse tempo.
É a resposta brutal
A todas as injustiças
A todo o mal social
Terrorista Guerrilheiro
Condenado, perseguido
É um homem destemido
Que não luta por dinheiro
Em vida dá o que tem
Dá o bem e faz o mal
Quando procura afinal
Que esse mal seja um bem
Na hora da Libertação
Já não é mais terrorista
É o herói da Nação
O seu maior Estadista
E é nesta contradição
Que não é racional
Que se procura a razão
que há entre o bem e o mal
Velho, velho, Maculundo
De tão alva carapinha
Tens a verdade do Mundo
Que ninguém mais adivinha
E quando um dia
Descer à cova
Este velho que foi justo
Que na vida até foi Soba
A mando do Muniputo
Ficará dele uma história
Por sinal bem aflita
Levou com a palmatória
Do cipaio e do capita
Humilhado e surrado
Este homem resoluto
Em vida tão mal tratado
A mando do Muniputo
Acordei já não dormi
Pus-me então a recordar
O que a saudade faz lembrar
Do tempo que já vivi
Neste mundo que rebola
Que gira sempre, sem findar
Recordei terras de Angola
Onde um dia fui parar
Nada aqui é igual
Do que é em Portugal
Tudo é diferente
Os costumes e a gente
E no jeito de vestir
Na maneira de tratar
E na forma de falar
Quando aqui desembarquei
Tinha um desejo muito meu
Ser patrão sempre sonhei!
Vejam só, o que então aconteceu:
Como numa sentença lida,
Eu fui logo promovido
Na hierarquia da vida.
Não me senti ofendido
Mas fiquei muito surpreso,
Com tamanha distinção,
Eu que sempre fui um teso
A ser chamado de patrão
Mas é já uma tradição
É o trato desta gente
Aqui todo o branco é patrão
Mesmo que seja servente
João Nogueira Garcia foi, sem dúvida, um grande varzeense, com um carinho muito especial pela terra adoptiva, o Quitexe. Sempre viveu intensamente tudo o que dizia respeito a estas duas localidades. Tudo o empolgava, como se de um legado pessoal se tratasse. Porque a Várzea (Vila Nova do Ceira) era a sua terra. Aí nasceu,em 1926, estudou e cresceu até que, aos treze anos, ainda menino da sua mãe, foi para Lisboa aprender o ofício de caixeiro. O miúdo, franzino, viu-se, de repente, feito homem na grande urbe, longe dos carinhos maternos. Subiu todos os degraus da profissão e em 1947, com 21 anos, rumou a Angola, no porão de um navio, em busca da terra prometida. Rapidamente a sua experiência no comércio lhe permitiu construir a sua própria casa comercial no posto administrativo do Quitexe, a terceira a ser edificada no local.
Casou em 1951 com Maria Aline que o acompanhou nas aventuras angolanas e ao longo da vida. O bom relacionamento e o respeito que nutria pelos povos desta região angolana foram fundamentais na expansão das suas actividades. Já em colaboração com o seu irmão Alfredo foi também agricultor de café e industrial. No Quitexe, que rapidamente cresceu e se tornou vila, nasceram os seus filhos. Envolvido na barbárie que toldou os espíritos de portugueses e angolanos em Março de 61, soube afirmar o seu carácter no respeito pela dignidade humana, contra a violência, a vingança e o terror. Deixou-nos o relato desses dias negros no repositório de memórias que é o livro “Quitexe 61 – Uma Tragédia Anunciada”.
De regresso à sua terra, é aqui que vai refazer a sua vida e empenhar a sua capacidade empreendedora.
Foi com enorme prazer que o acompanhei, desde miúdo, nesses seus múltiplos empenhos., Em 1964 fundou a Empresa Cerâmica da Várzea, fomentando a criação de emprego e a dinamização do comércio e indústria na sua terra.
Dedicado Varzeense foi um abnegado impulsionador, fundador e dirigente da Cooperativa Silvo-Agro-Pecuária de Vila Nova do Ceira e esteve na vanguarda do ressurgimento da Filarmónica Varzeense.
Lutador pela liberdade, contra a ditadura salazarista, participou activamente na oposição democrática, nomeadamente nas campanhas eleitorais de Humberto Delgado, em Angola, e da CDE em 69.
Não esqueço, como nas eleições de 69, aos 12 anos, ajudei a colar selos nos envelopes que levavam aos eleitores os boletins de voto da Oposição Democrática. Naquele tempo os eleitores tinham que ser portadores do boletim de voto! Eram tempos negros em que a opressão era a lei.
Foi de uma geração em que, para se ser político interveniente, fora da corte salazarista da União Nacional, era necessário muita coragem, determinação e, acima de tudo, amor à causa da liberdade e desprendimento de valores materiais. Talvez por isso, foi crescendo a sua desilusão com esta sociedade em que o dinheiro é cada vez mais rei e os princípios, as amizades e os compromissos são espezinhados na voragem da ascensão rápida a cargos e honrarias.
De facto, a sua intervenção não era marcada apenas pelo obreirismo, esgotando aí a sua realização pessoal. Pelo contrário, visava objectivos políticos bem determinados e balizados. E um deles era a esperança que depositava no cooperativismo, como expressão da solidariedade social, sem fins lucrativos, e a negação da exploração humana. Era nestes ideais que acreditava e, por isso, era determinado na sua defesa o que lhe acarretou incompreensões, desapontamentos e até ingratidão.
Diria, em síntese, que foi um Homem que não se limitou a plantar uma árvore, mas uma floresta inteira;
Não se limitou a escrever um livro, escreveu muito mais do que apenas as palavras: redigiu um testemunho vivo de que os valores da dignidade, da exaltação da vida, da amizade e da solidariedade são universais, eternos e compensadores;
Não se limitou a ter filhos, antes cultivou o sentido da família como ponto central de afectos, união, amizades e cumplicidades.
Ao meu Pai, o meu obrigado!
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